Um dos sentimentos mais nobres para aqueles que se dedicam a algum ministério cristão é a sensação de vulnerabilidade, um estado de humildade que implica em abrir mão de qualquer desejo neurótico por controle e reconhecimento, fundamentados em um desempenho ministerial idealizado. É manter o coração em paz com Deus, centrado em Cristo, para, assim, cuidar verdadeiramente das pessoas. Um trabalhador de Deus deve estar sempre à disposição de sua família, da igreja e da comunidade. Claro, em certo sentido, todo cristão deveria fazer o mesmo, porém, é essencial ressaltar o óbvio: um ministro (leigo ou ordenado)deve ser um cristão antes de ser um ministro. Aqui, uso o verbo “ser” com toda a prudência. Muitas vezes, tendemos a confundir atribuição com identidade, agregando um valor existencial ao que é apenas uma função.
Tenho insistido na dependência que uma tarefa feita para a glória de Deus tem da relação do cristão com Deus mesmo. Cristãos só cumprirão bem sua vocação se a colocarem em seu lugar. Qualquer ansiedade dirigida à tarefa, isto é, àquela expectativa de encontrar alguma segurança no trabalho, resultará em um desarranjo da alma e das relações. A própria experiência com o real sucumbirá a um tipo de empobrecimento da vida do cristão e do próprio mundo. Mas como evitar a armadilha do culto ao serviço? Dirigindo expectativas doxológicas, isto é de adoração, àquele que é servido. Para usar uma linguagem mais simples: O cristão deve se deleitar em adoração a Deus antes e enquanto trabalha.
Assumo mais um cuidado aqui. Adoração deve ser entendida como um estado de maravilhamento, espanto, temor e prazer em Deus. O adorador é alguém que se entretém com Deus, ele conhece e ama aquele que ele adora. Ele se enche de um sentimento elogioso, de gratidão e profundo fascínio por aquele a quem ele se devota. Estranhamente, esse tipo de sentimento pode ser cooptado ou desviado para algo que não dê conta de suprir a fome e sede por beleza, bondade e verdade que grita na alma humana.
O desvio desse sentimento religioso é o que chamamos de idolatria, que ocorre quando uma criatura, que pode se assemelhar a atividades culturais ou ministeriais nobres, assume um papel divino. O sucesso, o reconhecimento, os aplausos, o poder, a reputação, a aprovação dos outros e a popularidade podem se tornar verdadeiras divindades. Um ofício sagrado pode ser sequestrado para fins idólatras. Nesse caso, o ofício é profanado, equivalente aos utensílios do Templo Sagrado quando foram manipulados por mãos pagãs (Daniel 5). Essa idolatria desvia a devoção que deveria ser direcionada somente a Deus e coloca ênfase no empreendimento humano, ironicamente, distorcendo e comprometendo o sentido espiritual e doxológico da tarefa. É um lembrete de que nossa dedicação e adoração devem sempre se dirigir ao Criador e não às criaturas.
Pessoas santificadas possuem ofícios santificados. Por santidade entendo uma espécie de apropriação divina. Um cristão é santificado quando se torna propriedade de Deus. Ele foi comprado com alto preço (I Co 6.20), seu corpo não pertence mais a si mesmo (I Co 6.19). Ele reside em um domínio igualmente santo e trabalha para santificar o nome de Deus (Mt 6.9). Ele tem que ‘tirar as sandálias’ para ‘pisar em terra santa’ (Ex 3.5). Seus ‘pés são formosos’ pois ‘anunciam boas novas’ (Is 52.7). Sendo posse de Deus, seu trabalho deve refletir tal apropriação divina. Arrancado de sua própria vontade, agora, deseja a vontade daquele que o possui (Mt 6.10), como Jesus, essa se torna sua ‘comida e bebida’ (Jo 4.34). É nesse sentido que o ofício do santo é santificado.
Há muita gente vocacionalmente inquieta que está em busca de paz e espera encontrá-la em um tipo de trabalho, atividade, ministério, missão, competência ou ofício. Eu preciso ser mais explícito aqui. Estou há mais de uma década treinando, mentoreando e pastoreando vocacionados. Já vi muita gente em busca de uma vocação como resposta para crises emocionais, conflitos existenciais e desorientação na vida. Se você se identifica com a descrição, saiba, você está procurando se salvar por um trabalho, por uma obra. Contudo, é importante lembrar o óbvio: “pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus.” (Ef 2.8).
O problema desse tipo de inquietação é que, além dela rejeitar a pessoa e a obra de Cristo como o lugar de salvação e quietude existencial, ela também resultará em distorção da finalidade da obra feita para a glória de Deus (Ef 2:10). Neste caso, há uma dupla profanação: do santo que trabalha e do trabalho santo. Pois o crente e sua tarefa foram, ambos, comprados por Deus para sua glória. O crente e seu trabalho são, igualmente, cativos de uma vontade divina. Por isso, o cristão precisa se render. O rendimento do cristão significa perder-se em Deus para ser achado nele (Fp 3.8,9). Perder a vida para ganhá-la (Mt 16.25). Se aquietar na graça (2 Co 12.9) e crescer na satisfação que vem da adoração.
Uma vez que o cristão sossega na obra e na pessoa de Jesus Cristo, ele terá uma relação moderada com seu trabalho. Algumas vezes, depois dessa conversão, ele achará que seu trabalho se tornou um tanto “sem gosto” comparado à excitação de antes. O que pode ser um bom sinal, pois, essa pode ser uma boa evidência de que o coração está sendo calibrado, suas expectativas estão sendo reajustadas e o trabalho está assumindo seu lugar adequado. A ironia é que quanto mais o cristão se encontrar satisfeito em Deus, mais Deus o chamará para uma tarefa fora de si mesmo. Quanto mais vontade de ‘residir nos átrios’ (Sl 84.10), mais Deus o impulsionará a ser cooperador de sua obra. No fim, Deus está salvando, pela graça, tanto o obreiro quanto suas obras, justamente aquelas que Ele preparou com antecedência para que o cristão andasse nelas (Ef 2.10). Dessa forma, o cenário está pronto para a outra face da adoração: a missão.
A verdadeira adoração conduzirá o cristão inevitavelmente ao trabalho, só que agora, por motivos mais nobres. Na medida que ele ama a Deus, ele refletirá esse amor aos que estão a seu redor. Com isso, o trabalho voltará a ser santo. Não sendo profanado por carências, faltas, ansiedades e busca por autogratificação. O trabalho volta a seu lugar doxológico, sendo feito por uma criatura igualmente doxológica. Como uma espécie de espelho angular, o cristão torna-se um tipo de sacerdote (I Pe 2.9), que sonda o Santo dos Santos para depois refletir a glória de Deus ao povo. Ele se torna um equivalente de Moisés que sobe ao monte para adorar, mas volta ao povo com o rosto brilhando (Ex 34).
Por fim, a resposta à tentação e à ansiedade de transformar a tarefa em salvação não implica em abandonar a própria tarefa. Não se trata de viver uma vida inquieta, preso em um ciclo vicioso de busca incessante por ocupações. Também não envolve abraçar um quietismo silencioso, uma forma de apatia. A redenção da tarefa ocorre quando reconhecemos que o que Deus nos proporciona através de Jesus Cristo é suficiente. No entanto, isso só se torna possível quando o adorador está, acima de tudo, no seu devido lugar, ou seja, diante de Deus.
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