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  • Igor Miguel

Formação Acadêmica Livre



Roger Scrutor (1944–2020) escreveu um importante ensaio intitulado “O Fim da Universidade”, que a propósito foi excelentemente traduzido pela querida Ana Staut. Em sentenças cuidadosamente elaboradas, o filósofo britânico nos brinda com uma análise honesta sobre o “fim” da universidade em um sentido duplo: Seu propósito e seu fracasso institucional.


Quanto a seu propósito, a universidade está aí para prover saberes e conhecimentos necessários para a perpetuação da cultura e o florescimento do ser e da comunidade humana. A universidade é ontologicamente uma instituição cuja finalidade (telos) é a promoção do conhecimento. Quando instituições de ensino superior fracassam em cumprir sua finalidade, elas se descaracterizam, e tornam-se outra coisa. Não é raro encontrar algumas faculdades ou departamentos acadêmicos que mais se parecem com centros de militância política, plataformas partidárias, templos religiosos, instituições financeiras ou empresas. Essas sobreposições de lógicas institucionais estranhas à universidade produzem uma deformidade ontológica, portanto, aqueles que buscam em uma instituição acadêmica o “conhecimento” frustram-se, pois a instituição é instrumentalizada para outro fins. A consequência mais desconcertante é que este cenário tende a tratar o conhecimento como algo a ser desconstruído e problematizado. Sempre há um ar de cinismo quanto a possibilidade de se conhecer e de se ter acesso a alguma verdade.


A deformidade ontológica da universidade resultará, segundo Scruton, em um outro “fim”, neste caso, a destruição da própria universidade. O autor percebe esta tendência principalmente nos cursos de ciências humanas. Como são territórios tomados por agendas políticas, projetos de revolução cultural, afirmações identitárias e críticas constantes a todo saber historicamente acumulado, acabam se transformando em lugares onde o conhecimento é vilipendiado. Todo saber está ali para se tornar alvo de esquartejamento, para ser desmontado, e se tornar, enfim, estilhaços de algum objeto agora impossível de ser identificado ou analisado.


Não chego no mérito de como abordagens críticas caem em um tipo de argumento circular e como há muito de falacioso no método aí adotado. Entretanto, mesmo diante de tanta fumaça neste incêndio revolucionário, algo deve ser considerado: Há muita gente em busca de conhecimento autêntico, gente interessada em construir ao invés de desconstruir, edificar ao invés de implodir. A razão para a popularidade do desconstrucionismo na academia parece óbvia: É muito mais fácil demolir uma catedral milenar do que lançar seus fundamentos, o que dirá, terminá-la.


Mas onde apreciar a arquitetura de um conhecimento autêntico quando a universidade está em crise em relação ao que é bom, belo e verdadeiro? Como ser propositivo e adquirir conhecimento em um cenário de incertezas, saberes fluídos, hiper-perspectivismo, relativismo moral e de pós-verdade? Uma constatação filosófica é que os dias são de crise epistemológica, isto é, uma dúvida obsessiva sobre a possibilidade de qualquer conhecimento.


O cenário se torna ainda mais nebuloso para aqueles que desejam conhecer a partir de concepções de mundo ou de tradições rejeitadas pelos grupos que, hoje, têm a hegemonia do pensamento acadêmico. Cristãos, judeus, muçulmanos ou hinduístas não possuem muito espaço para partilhar suas respectivas epistemologias. Particularmente, o cristianismo e o judaísmo são vistos como visões de mundo de brancos, ricos e burgueses, não obstante, o cristianismo ser uma religião negra e em vias de se tornar a religião do Sul Global.


O cristianismo, a tradição intelectual que me localizo, se apresenta como um depósito de teólogos, filósofos, educadores e cientistas. Suas práticas eram afetadas por concepções de ser, mundo, humanidade, natureza e cultura derivadas da singularidade de sua fé no Deus Trino e na auto-revelação de Deus como entregue pelas Escrituras Sagradas.



O cristianismo imagina e interage com o mundo de maneira completamente diferente daqueles que optaram pela desconstrução histórica. Lembrando que não há um problema no direito de se afirmar uma crença na descrença, contrassenso é sua promoção com fins intelectualmente hegemônicos. Como se pode ver, algumas vezes (algumas?) até o anti-colonialismo pode ser colonialista.


O cristianismo, por sua vez, afirma a possibilidade de autêntico conhecimento sobre Deus e a realidade. Ele acredita que, apesar das limitações cognitivas impostas por problemas espirituais profundos, o ser humano pode cooperar para transformações e avanços culturais significativos. Por outro lado, o cristão não é ingênuo. A noção de queda exige certa prudência epistêmica, quase um tipo de ceticismo (sem negação) quanto à capacidade da razão e do conhecimento formal.


Infelizmente, em muitos contextos, o ceticismo cristão foi exagerado, transformando-se em anti-intelectualismo. Por outro lado, é inegável que muitos cristãos não viram qualquer tensão entre sua fé e a atividade intelectual, na verdade, encontraram na fé sua maior razão para se envolverem com a reflexão e a investigação científica e acadêmica.


No mundo moderno, pressões do secularismo tornaram a integração entre fé cristã e academia muito difíceis. Uma vez que o cristão toma consciência de sua própria tradição e visão de mundo, ele se vê, frequentemente, diante do seguinte dilema: Como se envolver com um campo de conhecimento acadêmico a partir da tradição intelectual de sua comunidade de fé?


Parece que, com exceção de algumas poucas instituições confessionais, a universidade tem se tornado um ambiente pouco favorável, e muitas vezes hostil, à integração entre fé cristã e atividade acadêmica. Todo aluno cristão, que luta para manter integradas sua fé com a vida acadêmica, sabe que comumente a vida universitária parece um trabalho missionário entre povos não-alcançados. Me pergunto, se de fato, não é exatamente este o desafio missiológico do cristão no campus.


Não acho que ainda estamos no momento de se retirar da universidade. Pelo menos em nosso contexto brasileiro, a “Opção Beneditina”¹ ainda não é bem uma opção. Mas, concomitante à atividade acadêmica, muitas vezes, o cristão terá que procurar aquilo que Scruton chama de underground seminaries (seminários clandestinos). Eles seriam agremiações acadêmicas livres que se colocam como produtoras de conhecimento e espaços de reflexão.


O fato de serem livres não implicaria necessariamente em menos rigor ou baixa qualidade acadêmica. A propósito, o título de universidade não é um selo de garantia de que tais problemas não ocorrem. Mas é possível oferecer conhecimento acadêmico autêntico, de alta qualidade, em ambientes livres e explicitamente confessionais.


Pensando nisso que iniciativas de formação livre em teologia, filosofia, ciência, política, temas culturais e artes devem ser consideradas como ótimas alternativas para cristãos em busca de uma integração entre sua fé e saberes acadêmicos. Nesses contextos, será possível criar verdadeiras redes de intelectuais cristãos comprometidos com sua confessionalidade, e ao mesmo tempo, intelectualmente engajados.


Cristãos continuarão na universidade, manterão seus diplomas, continuarão publicando em periódicos, darão prosseguimento a suas pesquisas, mas encontrarão em ambientes confessionais livres inspiração e subsídio para, inclusive, demonstrarem que sua visão de mundo pode muito contribuir para soluções, pesquisas e reflexões de interesse comum.



Não tenho dúvida que a internet viabilizou ainda mais a disponibilidade de formação confessional livre. Claro, este ainda é um campo que exige muita criatividade, inovação, investimento e responsabilidade acadêmico-teológica. Por esta razão, cristãos precisam considerar que este é o cenário perfeito para a promoção e o avanço de uma inteligência cristã. Em nosso caso, que seja particularmente reformada e evangélica.


Nos últimos anos procuro fornecer conhecimento teórico e metodológico sobre como cristãos podem pensar uma pedagogia cristã que não sirva apenas escolas confessionais e a igreja local, mas uma pedagogia cristã que contribua para a vida comum e a sociedade como um todo². Me ocupo com o tema, pois estou convencido que além de possuirmos uma rica e longa tradição pedagógica, também, temos subsídio para incorporar saberes de campos científicos, que não conflitam, mas trazem importantes contribuições para uma filosofia e metodologia de aprendizagem.


Enfim, ando às voltas com a necessidade de se criar espaços e contextos de reflexão livre em pedagogia cristã, não apenas isso, mas também agregar soluções metodológicas para se ensinar mais e melhor. O desafio é que, mais do que nunca, é fundamental que se recupere a figura do professor-mestre, isto é, o docente erudito, combinado com bom domínio didático. O primeiro exige formação cultural, o segundo, formação pedagógica e metodológica. Não conheço programas de formação docente que combine ambos. Este é o cenário perfeito para a criação de plataformas de formação livre e complementar em pedagogia.


Quer saber mais sobre o que andamos pensando, produzindo e trabalhando sobre o tema? Clique aqui.

___________________


¹ “Benedict Option” (Opção Beneditina) de Rod Dreher é um livro cuja tese básica é: Ante a eminente, senão, já concretizada derrocada do cristianismo na luta cultural na América do Norte, este seria o momento do cristianismo se retirar do campo público e formar comunidades intencionais com suas próprias instituições e práticas. Este recolhimento seria inspirado na formação dos monastérios beneditinos no tempo de decadência de Roma. Os monastérios foram lugares onde o cristianismo seria preservado até o tempo em que ele tivesse condições de oferecer, novamente, uma teologia pública.


² Os cursos Pedagogia Cristã: Teoria e Prática oferecido pela ABC2 e a Jornada Pedagógica são alguns dos projetos que venho desenvolvendo. Quer saber mais? igorpensar@gmail.com

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