- Igor Miguel
Confissões Inacabadas de/sobre Smith
Atualizado: 2 de jun. de 2022

Li a postagem educada, mas crítica, do amigo e filósofo Filipe Fontes sobre James K.A. Smith, baseada principalmente em um trecho do texto “Eu Sou um Filósofo. E não podemos pensar uma maneira de sair dessa bagunça”. Gostaria de escrever aqui algumas impressões sobre o tema, uma vez que muita gente conheceu e se interessou pelo autor, também, por minhas postagens, textos, pregações, podcasts e menções ao intelectual.

Leio os artigos e livros do filósofo canadense há pelo menos 12 anos. De suas obras, não li umas duas. Smith foi um dos poucos autores que me devolveram uma apreciação de coisas comuns que fazemos na igreja local. Ele me ajudou a enxergar beleza evangélica em gestos como a pregação, o senso comunitário, a imaginação, a importância dos sacramentos, confissões de fé e a liturgia. Graças a sua insistência antropológica no homo liturgicus, pude apreciar sabores da vida da igreja, que em tempos de cinismo eclesiológico, me chegaram como ar fresco. Foi também por causa de sua maneira de ser pós-moderno, isto é, sendo pré-moderno, que consegui apreciar um sentido menos sectário de ser reformado: Sendo mais católico (não em seu sentido romano, naturalmente).
Aprendi sobre formação virtuosa e pedagogia com o homem da Calvin University. Procurava uma pedagogia cristã que encontrasse correspondência com sua própria tradição formativa, e assim, superar certa reatividade ou a necessidade de sempre depender de uma paideia estranha a seu próprio modo de educar.
É inegável sua criatividade e poder de articulação entre filosofia, teologia, ciência política, ética e outras disciplinas. Qualquer leitor familiarizado com Smith sabe que ele faz experimentos e ajustes filosóficos a cada livro que escreve. Suas obras soam mais como um tipo de biografia filosófica do que obras a serem dogmaticamente acolhidas. Talvez haja alguma pista em sua apreciação pela trajetória biográfica do próprio Agostinho. Quem sabe os textos de Smith deveriam ser lidos mais como sua própria versão, ainda inacabada, de Confissões?
Há vários Smiths. Há o da fase Ortodoxia Radical (Milbank), do diálogo crítico ao movimento igreja emergente, da filosofia continental, o momento anti-revolucionário (fase que escrevia para o American Conservative, antes da treta com Dreher), o momento agostiniano, e finalmente, o momento Taylor-Oliver O’Donnovan, onde dá pistas de um “engajamento-prudente” (em sua teologia pública). Jamie confessa sua aproximação com o platonismo cristão de Hans Boersma, que se apresenta como uma alternativa a certo kuyperianismo-secularizado que imanentiza muito e perdeu a Visio Dei. Portanto, ao valer-se de Smith, seja em suas válidas contribuições, ou para criticá-lo, é muito importante localizá-lo nessas fases.
Lembro que Smith é filósofo, o que lhe fornece certo ar de liberdade para experimentar diálogos e sínteses, tentação que teólogos ortodoxos evitam, por razões óbvias. Porém, a prática intelectual, mesmo para um filósofo cristão, deve ser disciplinada, afinal o cristão é escravo de Cristo e do cânon, independe de seu ofício. Não dá para ser cristão e livre pensador pelo simples fato de se confessar: “Jesus Cristo é o Senhor”. Mas isso pode soar “proposicional” demais para um filho do pós-liberalismo de Yale, não é verdade?
Sim, Smith pode e deve ser criticado e submetido aos escrutínios da régula fidei. Filipe Fontes está certo em explicitar supostas falhas em seu pensamento, como também, Yago Martins fez em uma conversa que participei com ele e outros irmãos. Lembro-me de gente que ficou ofendida pela posição crítica do Yago a Smith e chegavam a mim esperando algum tipo de solidariedade. Para a frustração dos que se ofenderam em meu lugar, não tenho Smith como alguém isento de críticas, ao contrário, tenho certeza, que mesmo ele, se surpreenderia com tal dogmatismo sobre suas ideias.
Vale uma ponderação aqui. Convenhamos que Smith faz críticas importantes ao racionalismo. O Evangelho é por demais belo, narrativo e encarnacional para ser reduzido a uma cadeia de afirmações proposicionais. A forma pode distorcer o conteúdo, por isso, a insistência imaginativa de Smith acaba sendo um convite para uma apologética mais estética e menos racionalista, como recomenda Carl Trueman. Mas, percebo que o pêndulo em Smith está indo em uma direção romântica, mística e reativa demais ao que as Escrituras explicitamente chamam de doutrina, ensino e verdade.
Cristãos deveriam retomar o Evangelho mais como uma história do que tópicos sobre como alguém é salvo, não tenho dúvida. A mensagem deve vir mais como um enredo cristológico do que fórmulas de uma receita de bolo. Mas, já adianto o que sempre me incomodou em Smith, principalmente na Trilogia Liturgias Culturais: A falta de uma boa integração entre dogmática e narrativa.
Não há dúvida de que as orientações apostólicas do Novo Testamento são permeadas de ordens sobre doutrina, ensino e leitura das Escrituras. Porém, muita gente quando lê tais ordens, tratam-nas como se fossem recomendações para um ensino silogístico das Escrituras. Na verdade, quando um judeu como Paulo fala sobre justificação, por exemplo, liga a doutrina ao drama abraâmico. Por trás de temas como regeneração, fé, santificação e ressurreição há inúmeras histórias e narrativas que lhes dão suporte. Este é o ponto que Smith deixa escapar. Em seu empenho para se opôr, com razão, à idolatria racionalista (que é uma idolatria mesmo), ele perde o ponto de contato entre doutrina e narrativa. Falta a Smith um pouco de Drama da Doutrina, de uma abordagem Canônico-Linguística. Neste ponto, Kevin Vanhoozer ganha o jogo ao reconhecer que por trás de afirmações doutrinárias há grandes dramas canônicos.
O artigo de Smith me trouxe sentimentos de que, talvez, eu tenha que ser um apreciador mais explicitamente crítico de algumas de suas ideias. Pois entendo que o Evangelho não é um conteúdo proposicional, mas dizer que “a verdade do evangelho é menos uma mensagem a ser ensinada” é ir longe demais. De alguma forma, isso é assumir uma direção anti-evangélica, é cair na mesma ilusão de reduzir “boas novas” a “boas obras”.
Contudo, percebo um Smith que cansou de militar. Em um mundo onde pessoas estão mais tribalizadas e cada vez mais imersas em suas bolhas — virtuais e reais — o filósofo público dá sinais de extremo cansaço cognitivo e procura se refugiar na estética. Me solidarizo e temo. Em minha casa, meu compromisso com o dogma não me distanciou de meus filhos (como ele se refere a sua fase dogmática), ao contrário. Aqui, justificação, encarnação, salvação, ressurreição e eleição têm trilha sonora e muita história contada em forma de saga. Talvez, porque seja casa de pedagogo e não de filósofo.
Em suma, abaixem as armas. Smith está em seu momento de dúvida “racional” (rsrs). Tenham paciência! Não o levem mais a sério do que ele se levaria. Continuem apreciando sua culinária, mas não o façam sem um paladar treinado pelo cânon e pela confessionalidade. Há muito o que aprender e ler com Smith em suas fases e obras. Há muito proveito em Cartas a um Jovem Calvinista, Imaginando o Reino, Aguardando o Rei, Você é Aquilo que Ama e Na Estrada com Agostinho. Mas, há muito o que criticar em suas obras também. Por isso, a crítica do Filipe Fontes de uma “aproximação cuidadosa” é relevante e tem seu lugar. Mas, observem que no cuidado também há a indispensabilidade de uma aproximação. Há coisas lá que devemos ter cuidado? Sem dúvida. Há coisas lá que precisamos aprender? Sem dúvida. Ler Smith é ler uma confissão inacabada, nossa expectativa é que ele termine a sua como Agostinho terminou a dele:
“Que homem será capaz de fazer que outro homem compreenda essas verdades? Que anjo a outro anjo? Que anjo a um homem? É a ti que devemos pedir, é em ti que devemos buscar, é à tua porta que devemos bater. Assim, somente assim receberemos, somente assim encontraremos, somente assim nos será aberta a porta” (Confissões de Santo Agostinho, Livro XIII, 53).
Enfim, essas são minhas confissões sobre James K.A. Smith. Pelo menos, até o momento, afinal, assim como ele, posso mudar minhas impressões. Continuo observando e esperando que ele faça mais um bom ajuste em sua jornada filosófica e não se perca On the Road.